Otakus existem em Maputo e são muitos: o sucesso de Demon Slayer mostra que a paixão organizada pode mudar a programação

Ivan Muzila

O caso “Kimetsu no Yaiba” mostrou que os nichos em Moçambique existem, pagam bilhete e merecem espaço nas salas. Bastou só escutar, organizar e confiar.​

Cresci em Maputo nos anos 90, quando ir ao cinema podia significar duas experiências opostas: entrar numa sala icónica como o Cine Charlotte, na Eduardo Mondlane, ou atravessar o portão de um quintal num dos nossos bairros suburbanos para ver um VHS numa televisão colorida, sentado numa cadeira de plástico ou caixa de refresco, rodeado de vizinhos com uma moeda de 1000 (antiga família) prontos para ver os astros icónicos dos anos 80/90: Van Damme, Jackie Chan, Sylvester Stallone e outros.​

O cenário mudava, mas a magia era a mesma: comunidade, expectativa, histórias que nos levavam para longe. Entre 2013 e 2014, com a abertura dos Cinemas Lusomundo na província de Maputo, a experiência ganhou brilho técnico, som envolvente, imagem impecável e a possibilidade de acompanharmos estreias mundiais, de animações da Disney a super-produções como Os Vingadores da Marvel, sem spoilers e com a dignidade que os filmes merecem. A concorrência do Nu Metro consolidou hábitos e trouxe dynamismo à programação. Faltava, porém, um território pouco explorado: o dos animes.​

Da cinefilia de bairro às estreias mundiais

Houve tentativas de exibir anime em Maputo, sem o retorno esperado. Criou-se a percepção de que não havia público suficiente. O que não se via, porque viviam dispersos e discretos, era o tamanho real dessa comunidade. O hábito de ver cinema manteve-se, da cadeira de plástico ao reclinável, sempre com o mesmo desejo: partilhar emoções no escuro de uma sala. A diferença, hoje, é que os públicos se organizam e fazem-se ouvir.​

O que torna “Demon Slayer” especial

Anime é animação japonesa com códigos próprios, traço estilizado, ritmo particular, universos morais complexos. Muitos títulos populares têm classificação etária mais alta, não por gratuitidade, mas por enfrentarem dor, perda, ética e superação com frontalidade.

“Kimetsu no Yaiba”, lançado em série em abril de 2019, conquistou o mundo ao combinar coreografia visual de cortar a respiração com uma história clássica e pungente. Tanjiro regressa a casa e encontra a família massacrada por um Oni; a irmã, Nezuko, transformada em demónio, permanece como razão da sua luta. É a jornada do herói contada com delicadeza, em arcos que pesam pelas emoções que convocam. Em Moçambique, todos os que acompanham anime conhecem “Demon Slayer”; muitos tinham planos de viajar à vizinha África do Sul para ver o filme, outros resignavam-se à pirataria de péssima qualidade ou a esperar o Blu-ray por tempo incerto. Faltava uma ponte entre desejo e ecrã.​

A mobilização da comunidade pelo Outro Mundo

O colectivo Outro Mundo decidiu organizar-se. Procurou o Nu Metro e ouviu um desafio pragmático: provar a procura. O objectivo era angariar entre 400 e 600 fãs, num grupo de WhatsApp, comprometidos a estarem na sala no dia da estreia. Seguiu-se um pequeno manual de mobilização digital. Em meados de agosto, a comunidade lançou uma campanha totalmente orgânica, articulou convites em grupos de anime, criou “buzz”, tornou visíveis as intenções de compra e, no dia 24 de agosto, chegou a resposta: o cinema aceitou e confirmou condições para exibir o filme pelo menos nos primeiros três dias da janela mundial e nos fins-de-semana seguintes.​

12 de setembro de 2025, o dia em que a fila falou mais alto

Durante três dias, todas as sessões em duas salas com mais de cem lugares esgotaram. A plateia levou cor, fantasia, alegria, cosplayers, acessórios e selfies a replicar poses icónicas; uma energia que transformou o cinema num pequeno festival.

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Curiosos que nunca viram anime misturaram-se a veteranos otakus; famílias apareceram com adolescentes e crianças mais velhas; ouviram-se comentários sobre a fotografia, desenho de som e, o melhor de tudo, o ambiente dentro da sala parecia a final de uma Copa do Mundo. Foi cinema como experiência colectiva, não só um bilhete, uma memória. Nas redes, a publicação de anúncio de confirmação somou cerca de 1300 gostos, 34 mil visualizações, 13 mil de alcance e 2 mil interacções no Instagram, números partilhados pelo gestor da página, Adónis Vieira. Métricas não são tudo, embora aqui contem uma história clara: havia público, faltava o gesto de fé.​

O que fica para o mercado

Para os exibidores, escuta activa e pilotos de baixo risco com comunidades organizadas reduzem incerteza e abrem novas linhas de receita. Programar por janelas estratégicas, sessões de estreia alinhadas ao calendário global e reforço aos fins-de-semana maximiza a ocupação. A experiência extra-sala, de brindes a pontos fotográficos, multiplica o valor percebido, prolonga a conversa e gera conteúdo orgânico. Para as distribuidoras, dados locais importam. Nichos aparentemente pequenos se convertem acima da média quando se sentem vistos. Para marcas e patrocinadores, o encaixe entre branding e cultura pop jovem gera equidade de marca real, para lá do outdoor esquecido. Para a comunidade, disciplina organizada e clareza de compromisso transformam gosto em acontecimento.​

Podemos concluir que…

Há uma lição profunda sobre a nossa cultura de cinema. De quintais com VHS ao Dolby Atmos, o que nos moveu sempre foi o encontro, reconhecer-se no outro, comentar a cena, dividir um silêncio pesado depois de um clímax. «Demon Slayer», em Maputo, foi um reencontro. 

Mostrou que as redes sociais, usadas com propósito, não existem apenas para moldar percepções políticas ou sociais; podem criar mercados e trazer entretenimento internacional de qualidade para públicos dedicados e para novos públicos que descobrem ali uma curiosidade que não sabiam ter. 

Fica a nota de agradecimento a quem abriu portas (Outro Mundo), ao cinema (Nu Metro) que ouviu e arriscou, à comunidade que trabalhou e compareceu, e ao Kabum pela oportunidade de contar esta história. Fica também a certeza de que não há nichos pequenos quando há paixão organizada. Em Moçambique, gostamos de cinema. Sempre gostámos. Às vezes, o que falta é alguém acender a luz da sala. (Anime não é desenho animado…)

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